O homem que apanhava estrelas (adaptado de "The starcatcher"


         Das várias histórias e figuras da minha infância que guardo na memória, uma que ficará para sempre gravada é a de um forasteiro que veio morar no pequeno povoado em que nasci, quando da construção da linha de trem, que prometia ligar o litoral ao outro extremo do continente, trazendo progresso e civilização. Trouxe gente de todas as cores e falas,costumes estranhos. 
Nós, naturais do lugar, aprendemos a conviver e aceitar essa nova situação, assim como abríamos as mãos para receber os cobres que ganhávamos pelos mais diversos serviços para atender aos novos moradores. 
Pequenos comércios surgiram em cada porta, onde se vendia de tudo: rendas e bordados, serviços e os mais diversos quitutes. E para as mais licenciosas e já passadas dos anos sem casamento a vista surgiu a oportunidade de oferecer certos “serviços” dos quais não se faz propaganda, mas que em todo povoado e cidade existe. 
E com isso a nossa pequena vila começava a tomar forma de pequena cidade, à medida que as obras para receber a ferrovia aumentavam. 
Mas o que era sonho logo acabou. A ferrovia veio, mas por um desses caprichos do destino (atendendo ao interesse de importante político) resolveu-se mudar o trajeto para outro municípo a quilômetros da nossa vila. Com isso, do mesmo modo que os forasteiros (e principalmente o seu dinheiro) surgiram, do dia para a noite se foram, deixando para trás algumas contas não pagas, uma meia dúzia de bastardos (chamados pela gente faladeira e maledicente de filhos do trem) e umas tantas desiludidas mal faladas e sifilíticas que ficaram a esperar as promessas de casamento que nunca iriam acontecer.
De todos os forasteiros sobrou apenas um que nomeia essa história que conto agora, e mesmo passados tantos anos, da minha meninice ao término de uma vida, ainda flutua em meus pensamentos tão viva que bem poderia ter acontecido agora a pouco. 
Esse forasteiro, ninguém soube precisar porque, não partiu ao raiar do dia como os demais. Continuou a morar num pequeno sobrado que comprara ao chegar à cidade de uma viúva local, que, mal pegando valor acertado da venda, partiu como tomada por loucura, gritando coisas que ninguém entendeu e sumiu-se por esse mundo afora.
De começo, sua presença passou quase sem alarde, mas à falta de coisa melhor para fazer, não demorou muito a sua estada ser assunto de todas as rodas, das velhas faladeiras aos poucos homens de letras, todos só comentavam o “porquê” do forasteiro não ter partido.
A curiosidade se tornou tamanha, que um grupo resolveu investigar por conta própria. Indagaram o dono do armazém que lhe mandava entregar mantimentos, e ele só respondia que se limitava a mandar deixar as encomendas através de moleques de recado, que por sua vez pouco ou nada sabiam. Chamaram pela preta velha que cuidava da casa desde o tempo da antiga proprietária que  com seu falar desdenhoso esbravejou: - em assunto de patrão eu não me fio e nem me enfio, fico no meu canto e dele não saio. E deu de costas rindo alto às gargalhadas. Procuraram pelo Dono do único botequim que sobrara na cidade, nada. Pelo padre que dizia a missa aos domingos e pelo sacristão que tinha fama de mexeriqueiro, tiro em vão, nada sabiam também. Não frequentava a rua das putas tampouco e nunca saia de dia, apenas em noites de céu estrelado quando se dirigia com sua luneta e outros petrechos (por este motivo ganhou das crianças a alcunha de "apanhador de estrelas") rumo a um morro próximo aos limites da cidade onde ficava por horas esquecidas. Quando era visto na rua e alguém lhe dirigia a palavra, retirava o chapéu, sorria e retomava seu passo, sem dizer palavra.

À medida que a cidade ficava cada vez mais pobre, triste e sem esperança pela volta da prosperidade passada, maior era a curiosidade que brotava na alma de seus moradores, e todos, na intimidade, tramavam ser os primeiros a descobrir o motivo desse estranho ainda ficar nessa vila condenada, onde as pessoas só ficavam por costume, ou medo de se aventurar mundo afora.

Numa noite quente e sem lua, alguns rapazes, cheios de ressentimentos e com a coragem que só a bebida dá, resolveram descobrir o mistério por trás daquele estranho que não falava com ninguém, (talvez, pessavam eles, por se julgar superior) e que se vestia de modo diferente ao do povo ordinário.
- Ele não frequenta o bar, só deve beber coisas finas, nossa cachaça não serve pra ele! Disse um mais amigo do álcool. 
- Não vai à igreja aos domingos, não é temente a Deus, e um homem sem Deus no coração não é digno de confiança! Falou um mais ressentido.
 - As nossas mulheres ele não procura, ele é tão melhor que nós assim para não se deitar com gente da nossa laia? Ao que todos concordaram.

Armados de paus,pedras e foices tocaram rumo ao sobrado do fim da rua, gritando e cantando coisas sem sentido, mas com muita raiva em cada sílaba. A esse coro juntaram-se velhos, doentes e toda aquela, até então boa gente da cidade. Gritando seus ódios pessoais e dirigindo-se a casa do estranho homem, que parecia não ter ouvido ainda os brados da turbe enfurecida. Mas se ouviu, porque não fugiu? 
De nada adiantaram os rogos do padre, pedindo bom senso, nem as ameaças do comissário de polícia e seus dois ajudantes esquálidos, não haveria balas e cela de cadeia para uma cidade inteira, que há essa hora em profana romaria enchia a rua principal, da pacata vila.
Nós, as crianças fomos poupadas do que veio a seguir, pela nossa preceptora que apesar do pouco tamanho e timidez de voz assumiu figura colossal a nossa frente e nos ordenou que a seguíssemos para a escola com ela onde passamos a noite toda cantando a plenos pulmões, para não ouvir os impropérios gritados por todos, até pelas senhoras mais recatadas.
O que conto a seguir é meio boato meio verdade, tirado de depoimentos colhidos de quem participou  do ocorrido.
Ao chegar frente ao sobrado a turba gritou por seu proprietário: Saia maldito, saia! E ele saiu. Saiu e foi espancado, cuspido e humilhado, como se fosse causa de todos os pecados do mundo, causa da ferrovia não passar mais na vila, do dinheiro e da fartura sumirem. Enquanto uma parte pilhava a casa, roubando o que podiam, e com sorrisos satisfeitos comemoravam o fruto da pilhagem outro grupo ateava fogo no que julgava inútil (livros, discos e pinturas estranhas, sem formas definidas).
Os mais exaltados, porém, e esses eram maioria gritavam em coro: Mata! Mata! E nesse frenesi que pareceu durar uma eternidade não se ouviu uma vez sequer o estranho, questionar o porquê do que estava lhe acontecendo. Quando o povo viu que o homem estava envolto em sangue e já prestes a dar seus últimos suspiros, deixaram o padre se aproximar e ouvir suas últimas palavras, um a um foram se retirando e o deixaram caído em meio a sangue e areia...
No dia seguinte, logo cedo o papa-defunto, a mando do pároco, retirou o corpo roto da rua, limpou e enterrou o estranho, e marcando sua cova com uma lápide onde podia se ler o seguinte epitáfio: "Sinceridade é como uma roupa que quando lhe serve, você não pode comprar, e quando compra não lhe cai bem. Agora voltarei a me vestir conforme a ocasião...e nunca mais confiarei na humanidade."
Após isso, o padre tirou a batina fechou a igreja e deixou a cidade, falando que deus já a havia abandonado muito antes. Dizem que se matou pouco tempo depois, atormentado talvez pelas últimas palavras do estranho. Desse momento em diante a cidade, como que tomada por uma praga foi definhando cada vez mais, e seus moradores foram vivendo e morrendo suas vidas como se nada houvesse acontecido, como se não tivesem participado do crime. Não falavam entre si sobre o assunto, mas olhavam uns para os outros com olhares de culpa. E desse momento em diante, não houve paz, nem esperança. Ela morreu com o estranho e como ele ficou, sem nome e sem voz...



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