Callíope de olhos escuros




[Deidade, do latim tardio deitate]: Substantivo feminino. Divindade, nume; deus ou deusa.

Páginas em branco, mente vazia. Somente o nada. Limbo existencial que bruxuleia em minha cabeça como aqueles outdoors de filmes noire dos anos 80.  E mesmo tomado pelo desespero kafkiano que aflige aqueles infelizes a quem as ideias não fluem, como os pensamentos fragmentados de um velho bêbado na porta de um bar de segunda num bairro decadente de uma cidade qualquer. Nessa metamorfose que não ajuda em nada.
Um órgão atrofiado e doente que não trabalha com a facilidade de antes. Assim está minha mente. Tratava minhas poesias como a uma amante antiga. Só há muito perdera da poesia a inspiração a forma e a métrica. Não prendia as palavras em minha mente tempo suficiente para moldá-las em algo inteligível. Faltava o ritmo, som e fúria. Faltava paixão, suor e lágrimas. Não havia mais gozo. A minha relação com as palavras estava a muito acabada. Vivendo apenas de recordações do que fora antes, como uma velha prostituta lembra-se do quanto era disputada enquanto conta os minguados trocados dos poucos clientes que ainda consegue. Minha mais fecunda criação atualmente era o vazio... Uma eterna noite sem lua onde vivia apenas vis-à-vis os mesmos dias, num ciclo aparentemente sem fim... Nem os ecos do passado, Nem fantasmas a assombrar-me... Um templo sem acólitos, fiéis ou deuses.
Quando a encontrei, meus sentidos ficaram todos em alerta, ao mesmo tempo em que surgia aquela sensação de pertencimento, de lugar onde sempre se quis estar. Aquele frio que percorre a espinha e te prepara para o bote. Não eras espectro, era ser em forma de mulher, e era bela. Não era altiva, mas poderosa, derrotou minhas defesas em segundos, e me tomou o ar e a atenção com aquele vozerio altaneiro, comum aos que devem ser obedecidos e venerados. Tento retomar o controle, em vão. Sinto então aquele cheiro de fêmea, que descontrola a minha libido na hora.  - Deidade, demônio! Não sei, mas é tudo que consigo pensar enquanto acompanho serviçalmente a dança que fazes ao caminhar a minha frente como se tivesse sido criada apenas para isso – extasiar-me...
Não a peguei e prendi com rituais arcanos, apenas me aproximei, não cultuei sua marca, apenas chamei pelo teu nome ancestral não uma, mas muitas vezes.
 - O que queres de mim afinal? Perguntou. O que se pode querer de uma deidade, de uma musa? Respondi. - Seja minha inspiração oh deusa, que tua voz rouca me desperte desse sono sem sonhos. Quero sentir, e sorver cada nuance, e cada faceta tua quero contemplar. E você me concedeu conhecê-la. Ora vens a mim como deleite, ora em frenesi. Da tua forma que sei bem, quero tudo, desde o gosto do teu sexo em minha boca ao calor e pulsar célere do teu coração que sinto em minhas mãos quando toco teus seios. Guardo sempre a lembrança de teus olhos, esses dois oceanos profundos, escuros me questionando e conhecendo a todo momento, devastando a minha alma e ao mesmo tempo me esperando, convidando... E a tua boca, ah, ainda sinto cada beijo, ainda ouço tua voz a todo tempo me impelindo até teus braços completando o meu ciclo de deslumbramento por ti.
Não precisas de mim, o que julgas sentir de verdade é apenas capricho de tua vontade, és homem e homens enganam a si e aos outros. Um dia verás isso. Vives a repetir discursos assim como se quisesse convencer a mim  de ser essa a verdade e principalmente convencer a si mesma. Não desdigas o que em mim sei e tenho como verdade. Deposito em você uma fé que nunca tive em mim. Acredites nessa declaração de quem se apresenta diante de ti despido e refeito, e pela primeira vez completo. Devolveu-me a vontade, tornou-se minha inspiração. Só te peço que aceites, minha Callíope de olhos escuros, minha moura-encantada, em troca do muito que tens me dado que aceites em troca minha devoção, o melhor dos meus dias, o primeiro e último pensamento que tenho.
                                                                                                                 


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